Dr. Adam Kowalik*
PRINCIPIOS DE RELAÇOES ENTRE A AUTORIDADE CIVIL
E ECLESIASTICA. RELAÇÕES ESTADO-IGREJA EM PARTICULAR NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
1. Dimensões fundamentais da Igreja. 1.1. A Igreja, sociedade jurídica. 1.1.1
Direito Canônico e Direito Civil. 2. O Estado como sociedade autônoma e soberana. 2.1.
A soberania do Estado perante a Igreja. 2.2. O problema das relações entre a Igreja e o Estado. 3. Legislação brasileira sobre
as relações entre a Igreja e o Estado. 3.1. A separação da Igreja e do Estado
na constituição de 1891. 3.2. Diagnóstico da situação atual. 3.3. O ensino religioso nas escolas públicas no Brasil. 3.4.
O ensino religioso no estado do Rio de Janeiro. 3.5. Ensino religioso e sincretismo. 4.
Conclusão.
1.DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DA IGREJA.
A Igreja na sua totalidade não pode
ser bem entendida e interpretada quando observada de fora, através dos diferentes aspectos que apresenta: histórico, sociológico,
cultural, filosófico, jurídico, espiritual etc. Quem a observar apenas ”fenomenologicamente” – como historiador, sociólogo, jurista ou filósofo –
não chegará a captar suas notas essenciais. “Tal aconteceria se, como alguns pretenderam, considerássemos a Igreja como fruto de um aperfeiçoamento das religiões pré-cristãs; ou como suporte de uma doutrina filosófica; ou como apêndice natural de uma
concepção da vida ligada a um espaço e a um tempo histórico; ou como superestrutura de um determinado sistema econômico; ou
como uma simples instituição de direito”.
A Igreja, então, mostra-se com duas dimensões bem definidas: è por um lado uma comunidade espiritual, e por outro,
uma sociedade organizada.
1.1. A IGREJA, SOCIEDADE JURÍDICA
A estrutura do povo de Deus, no entanto, não è um conglomerado amorfo. O povo de Deus distingue-se da massa porque
“…está constituído e ordenado neste mundo como sociedade”. A própria palavra Igreja (ekklesía), que significa, na sua origem grega, assembléia
reunida por convocação, è um termo bem expressivo do caráter social visível e externo próprio de uma verdadeira sociedade.
Mas não è possível conceber uma organização social, seja qual for sua natureza, sem que nela imperem normas jurídicas capazes de regularmente as relações recíprocas de seus
membros. Seguindo, pois, a doutrina clássica da sociabilidade do direito – ubi societas,
ibi ius -, claramente chegamos á conclusão lógica do caráter jurídico da Igreja.
“Hoje, parece especialmente necessário frisar este aspecto porque, na fase pós-conciliar, um revisionamento pouco
esclarecido pretende subestimar o caráter jurídico da Igreja”.
1.1.1 Direito Canônico
e Direito Civil
Tendo o Direito Canônico e o Civil como elemento característico a juridicidade e, portanto, a participação comum na
mesma ordem da justiça, è lógico que ambos se interliguem vigorosamente. Mas não deixam de existir diferenças profundas, já
que o Direito Civil tende a regular a ordem da justiça na sociedade temporal, tendo em vista a consecução do bem comum temporal, e o Direito Canônico está destinado a estabelecer a justiça na Igreja.
È certo que o “povo de Deus” e o “povo cidadão” coincidem de tal maneira que o indivíduo è
cidadão e fiel ao mesmo tempo, mas ainda que ambos os direitos coincidam no mesmo vértice, um e outro perseguem fins diferentes:
o bem comum social, no caso do Direito Civil, e o bem comum sobrenatural, no do Direito Canônico.
2. O ESTADO COMO SOCIEDADE AUTÔNOMA E SOBERANA
Toda sociedade reclama um direito, e todo direito, uma organização, uma instituição, um Estado. Seguindo o pensamento
da Escola Institucional de Hauriou, poderíamos definir o Estado, na fórmula concisa de Renard, um dos seus seguidores, como a instituição da idéia governamental, entendendo-se por idéia governamental a diferenciação
autoritária ordenada ao bem comum. Ou, de um modo mais explicito, como uma união estável de indivíduos e famílias, num determinado
território, sob a mesma autoridade soberana, para a construção de seus fins, ou seja, o bem comum.
Para a mentalidade do homem contemporâneo, è difícil entender uma Igreja
racial (unida por liames de acedência ou de sangue) como um Estado racista, tal como era conhecido pelo nacional-socialismo;
o Estado como fruto da misteriosa emanação da alma nacional ou da força ainda mais irracional que brota do sangue. Daí que,
deixando de lado razões de índole ética, uma concepção moderna do Estado não justifica nunca desigualdades jurídicas baseadas
na língua, no sangue, na raça ou no pensamento filosófico, político ou religioso.
Não cabem na atual mentalidade política os “fanatismos” de tipo temporal-religioso ou á concepção do Estado
teocrático.
A soberania do Estado e da Igreja tem, em última análise, uma mesma origem. Mas a natureza e fins de cada sociedade
fazem como que as soberanias correspondentes estejam revestidas de características peculiares. Na Igreja, a origem e legitimação
do poder ex ipsa ordinatione divina, parte da própria autoridade de Deus. Na sociedade civil, segundo a teoria clássica da translação, o poder descansa no povo
até que seja transferido a um indivíduo, grupo ou família determinada. Por outras palavras, o direito natural do povo de autogovernar-se
e de autodeterminar-se encontra, através do direito positivo humano, diferentes possibilidades de concretização histórica.
Daí que, assim como as estruturas constitucionais da Igreja estão no seu fundamento determinadas diretamente por Deus,
a organização do Estado civil pode configurar-se numa pluralidade de modelos jurídicos. Portanto, o direito de soberania estatal,
como escreve Leão XIII, “…não está por si próprio, vinculado necessariamente a nenhuma forma de governo: pode-se
escolher legitimamente uma ou outra, contanto que seja eficaz para a utilidade do bem comum”.
2.1. A SOBERANIA DO ESTADO PERANTE A IGREJA
A soberania do Estado, tal como acabamos
de apresentá-la – com suas competências e limitações in ordine suo -, está definida pela Igreja que reconhece ao Estado, no que toca diretamente os negócios
temporais, uma perfeita independência.
Com efeito, a Igreja foi historicamente
a primeira autoridade religiosa a defender a distinção entre a esfera temporal e a espiritual. Esta doutrina tradicional,
que germinou com o cristianismo e que se manteve durante todo o desenvolvimento histórico da Igreja, como nervo condutor da sua atividade, encontra sua atual constatação naquelas nítidas palavras da Encíclica Immortale Dei: “Deus dividiu o governo humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil…”.
De tudo isto se deduz uma sólida
e plena soberania do Estado no seu terreno que não pode nem deve ser invadida pela Igreja, invocando motivos de “ordem
sobrenatural”. Tais motivos não deixarão de ser paliativos de um “clericalismo” que rebaixa o sobrenatural
até o nível do temporal. Ainda que desta falsa mentalidade tratemos adiante, devem-se
lembrar aqui aquelas palavras de Pio XI: “A Igreja nem quer nem deve imiscuir-se, sem justa causa, na direção das coisas
estreitamente humanas”.
Deve-se conseguir, portanto, conforme
palavras de Pio XII, “…uma sã e legítima laicidade do Estado”, que outorgue à autoridade civil uma autonomia e liberdade completa dentro dos limites da sua própria competência.
2.2. O PROBLEMA DAS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O ESTADO
Como acabamos de ver, a competência da Igreja em assuntos que afetam a ordem sobrenatural è paralela a que corresponde
ao Estado em questões políticas. Como escreve Valton: “A Igreja e o Estado deverão
cumprir a sua missão a respeito de um mesmo sujeito que è o homem e o
objeto que ambos perseguem, cada um na sua ordem, não è senão a felicidade e a perfeição do mesmo indivíduo, membro ao mesmo
tempo do Estado e da Igreja”.
Quando
aparecem tais conflitos ou outros parecidos, teóricos ou práticos, como deve apresentar-se e solucionar-se o problema? Quem
decide e em que medida pode decidir? As respostas a essas perguntas constitui, por um lado, um problema filosófico e teológico
e, por outro, ou problema jurídico-político que recebeu ao longo da história diferentes soluções. Conforme as palavras do
pensador alemão Rommen, “…a história deste problema de relações è tão extensa e complicada desde a vinda de Cristo”.
3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE AS RELAÇOES ENTRE A IGREJA E
O ESTADO
Neste momento gostaria de apresentar uma síntese sobre as relações jurídicas da Igreja e do Estado no Brasil. Para
tanto è preciso fazer, preliminarmente, um breve estudo histórico, a fim de mostrar a razão de
ser e o verdadeiro sentido do regime de separação que atualmente vigora no país.
As relações entre o poder temporal e espiritual não foram sempre correntes durante a colônia. Em virtude do padroado,
o Estado sempre se considerou com direitos especiais sobre os bens eclesiásticos. A ingerência dos governadores se fazia sentir
mais através das corporações religiosas leigas, consideradas mistas (mixti fori).
Todo patrimônio eclesiástico, quer resultante das contribuições (dízimos, indulgências das bulas da Santa Cruzada), quer de
doações voluntárias, escapava ao controle das autoridades eclesiásticas. O Estado exercia intervenção permanente em mínimos
detalhes e arrogava-se o direito de suceder às instituições religiosas que se extinguiam.
Na Constituição de 1824 aparece patente o confessionalismo do Império, exprimido no seu Art. 5, do modo seguinte: “A religião católica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões
serão permitidas com seu culto doméstico ou particularmente, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”.
Sem entrar na crítica interna do citado artigo, e na clara oposição que hoje ofereceria em face dos princípios do Concílio
Vaticano II (direito à liberdade externa do culto), devemos assinalar que a realidade jurídica e social que girava em torno
do confessionalismo brasileiro manifestava um regalismo marcante.
A Constituição de 1824 estabeleceu que o catolicismo continuaria a ser a religião do Estado. Para os regalistas isso significava a manutenção do statu quo. Como conseqüência foram conservadas
várias vantagens para a Igreja: manutenção do clero e do culto, dos seminários, das missões e exclusão dos acatólicos da representação
política (esse último privilégio cessou com a lei de 9 de janeiro de 1881). Contudo, nunca se firmou uma concordata discriminando
os direitos do Estado e da Igreja. Através do Ministério do Império, o governo regulava questões de disciplina e mesmo de
liturgia. Entretanto, a vida religiosa sofria profunda crise. O prestígio do clero decrescia na vida política e cultural.
Especialmente os conventos se esvaziavam; vários caíram em ruína. Ordens inteiras extinguiam-se. Pensou-se seriamente em extingui-las
de vez, secularizando os religiosos restantes. Em 1854 foi suspenso o noviciado em todas elas. A decadência precipitou-se
ainda mais.
Observa-se, por um lado, a intervenção excessiva do clero na política do país “…mais perto do temporal
do que do espiritual”, como diz Oliveira Lima; uma intromissão nas lutas dos partidos. Por outro lado, a ingerência da autoridade civil em assuntos eclesiásticos chega
às últimas conseqüências do regalismo. Emprega-se amplamente o privilégio do padroado
(o direito de conferir benefícios eclesiásticos) e do beneplácito (a necessidade
da licença imperial para se publicarem atos na Cúria). Jurisconsultos renomados da época, especialista em questões constitucionais,
come escreve Cruz Costa, “…não hestiam em sustentar a doutrina de que o Estado tinha o direito de polícia sobre
o culto religioso, bem como o direito de inspeção quanto à disciplina e atividade espiritual do clero, e, sobretudo, que a nomeação dos bispos e o provimento dos benefícios eclesiásticos eram privativos da
soberania nacional, cabendo á Santa Sé apenas a faculdade da confirmação”.
Este regalismo, aproveitado habilmente pelas forças liberais, conseguiu, em muitos casos, reduzir os membros do clero a meros funcionários estatais e cercar as atividades das ordens e congregações religiosas,
chegando a converter-se – como graficamente escreve Magalhães de Azevedo – no “…cárcere de ouro da
Igreja”. A Igreja perdeu a sua autonomia e o Estado a sua legítima laicidade.
As idéias racionalistas e liberais, junto com a decadência do clero, a excessiva intromissão da autoridade civil em
matérias eclesiásticas, a tensão criada pela chamada “questão religiosa” e a defesa enérgica de sua legítima autonomia
por parte dos bispos brasileiros, foram configurando a atmosfera que envolveu o nascimento da República.
3.1. A SEPARAÇÃO DA IGREJA E DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DE 1891
A Constituição republicana de 1891 dissolveu completamente todo vínculo entre a Igreja e Estado. Assim, por exemplo,
lemos no Art. 72 § 7: “Nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial nem
terá relações de dependência ou aliança com o governo dos Estados”.
Que a Constituição de 1891 significou para a Igreja uma libertação do regalismo, reconhece-o tacitamente a pastoral
coletiva de 19 de março do mesmo ano, e os benefícios que a partir de então se seguiram para o desenvolvimento da Igreja são
fora de discussão.
“Mas deve ficar claro que as conseqüências benéficas da separação baseiam-se, principalmente, na liberdade de
atuação conseguida pela autoridade eclesiástica e não nos princípios do liberalismo laicista que, no Brasil, como em toda
parte, estiveram impregnados de ateísmo”. Claramente manifesta-se Tristão de Athayde neste sentido: “O que se quis fazer em 1891, foi justamente dar um golpe
de força na influência religiosa, não só na vida política, como na educação que ia preparar os homens políticos do futuro.
A mentalidade de 1891 era nitidamente anti-religiosa. A «liberdade» que a Igreja obteve, e
que foi sem dúvida um progresso sobre a servidão em que vivera no Império, não foi um serviço que a República entendeu prestar-lhe. Se houve um avanço, foi independente da vontade dos constituintes”. Assim criou-se um conflito patente entre realidade social e realidade jurídica,
entre os verdadeiros sentimentos do povo brasileiro e a cláusula constitucional que pretensiosamente queria representá-los.
Daí que esta desvinculação resultasse sempre artificial e postiça. E daí também que, a partir da sua implantação, começasse
a desenvolver-se um processo de aproximação ascendente. Esta progressiva aproximação teve suas repercussões na Constituição
de 1934 e, concretamente, na Constituição de 1946.
Relações Igreja-Estado na Constituição de 1946, 1967 e 1969:
*1946 Art. 31: “À
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios è vedado: estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes
o exercício. Ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em
prol do interesse coletivo”.
*1967 Art. 9: “À
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios è vedado: estabelecer cultos religiosos ou Igrejas; subvencioná-los;
embaraçar-lhes o exercício; manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração
de interesse público, notadamente nos setores educacional e hospitalar”.
*1969 Art. 9: exprime-se em iguais termos.
Nova Constituição de 1988 exprime-se com idênticas palavras, suprimindo, porém, a ultima frase (“…notadamente nos setores educacional e hospitalar”).
A força mais relevante, que está determinando no Brasil a aproximação Igreja-Estado, não parte nem da Igreja nem do
Estado. Parte fundamentalmente do povo, da sua mentalidade, da “alma” brasileira. Porque, como escreve Gilberto
Freyre, “…è muito difícil separar o brasileiro da religião”. O fato de serem milhões de pessoas vindas de tão diversa origem, pensando da mesma maneira, fiéis aos mesmos princípios,
è um fenômeno social que não pode ser ignorado pela legislação do país.
Por isso, podemos dizer, que foi o povo brasileiro que marcou e está marcando o ritmo de aproximação de relações que
chegaram a um nível de harmonia. A aproximação, portanto, è conseqüência, por um lado, dum fato sociológico e, por outro,
da devida representatividade desse fato na legislação do país, segundo os princípios democráticos que norteiam a nossa Constituição.
Neste sentido também podemos dizer que as relações Igreja-Estado no Brasil são, em parte, conseqüência da interpenetração
do binômio povo de Deus-sociedade.
Como expoente dessa harmonia poderíamos indicar, a titulo de exemplo, o discurso do Presidente da República, de junho
de 1965: “Hoje, volvidos quatro séculos, a Igreja continua a ter no Brasil largo campo de ação espiritual. Nem importa
que tanto hajam mudado as condições, a começar pela separação entre o Estado
e a Igreja, pois tal circunstância tem também contribuído para o aprimoramento das relações entre o temporal e espiritual.
Podemos mesmo afirmar que graças à feliz e mútua compreensão, cada qual se conservando no seu âmbito de deveres e objetivos,
suprimimos graves motivos de divergências – como ocorreu no Império – evitando que o Estado intervenha na vida
da Igreja do mesmo modo que esta não sofre os prejuízos de se imiscuir nas atribuições daquele. Assim, enquanto o desenvolvimento
material está, principalmente, a cargo do Estado, à Igreja cabe, sem duvida, conquistar aperfeiçoar os espíritos, o que em
nada impede, e até aconselha, que ajude a ação governamental mediante obras sociais complementares, inclusive o campo educacional”.
3.2. DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO ATUAL
Julgamos que as Constituições Brasileiras de 1946, 1969 e 1988 em linhas gerais acolheram e regulamentaram de modo
adequado os três princípios fundamentais que sustentam as relações Igreja-Estado segundo o espírito do Vaticano II. Respeita-se claramente o princípio de autonomia; defende-se o direito à liberdade religiosa nas suas dimensões individual
e social; mantém-se a devida atenção ás comunidades religiosas, afastando-se do laicismo dos primórdios republicanos, para entrar
num campo de aberta cooperação de favoritismos e discriminações.
Parece-nos, porém, que estas linhas de força – autonomia, liberdade e cooperação – poderiam marcar-se ainda,
em algum aspecto, de um modo mais vigoroso.
Em matéria de educação, por exemplo, poderiam determinar-se, em todos os estados brasileiros, estatutos que regulamentam de maneira positiva e prática o ensino religioso tal como o recomenda, de um
modo geral, a Constituição de 1946, a de 1969, e inclusive a nova Constituição de 1988.
3.3. O ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS NO BRASIL
O Projeto da lei de «Diretrizes e Bases da Educação Nacional» – LDBEN – Parecer n° 30, foi aprovado pelo
Senado Federal e encaminhado à Câmara dos Deputados constando no § 3° do art. 30:
“O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental, sendo oferecido sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos
alunos ou por seus responsáveis, em caráter:
I – confessional, de acordo com a opção
religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados
pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas, ou
II – interconfessional, resultante de acordo
entre as diversas entidades religiosas que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa”.
E nos §§ 4° e 5°: “Os sistemas de ensino
atuarão de forma articulada com as entidades religiosas para efeito da oferta do ensino religioso e do credenciamento dos
professores ou orientadores”. “Aos alunos que não optarem pelo ensino religioso será assegurada alternativa que
desenvolva os valores éticos, o sentimento de justiça, a solidariedade humana, o respeito a lei e o amor a liberdade”.
Os Bispos da Igreja Católica no Brasil, reunidos
na 34ª Assembléia Geral em Itaici (17 a 26 de abril de 1996), comentaram a tramitação deste projeto em modo seguinte: “O
povo brasileiro è profundamente marcado pela religiosidade. A sua história está impregnada de aspectos religiosos. Sua cultura
e identidade fundamentam-se em diferentes tradições religiosas. A lei Magna, promulgada sob
proteção de Deus, afirma, em seu preâmbulo, que a fraternidade è o bem supremo da Nação. O Estado moderno não pode e não deve abdicar do seu dever intransferível de assegurar os direitos individuais do cidadão
no exercício da cidadania, e dos grupos que buscam a realização do homem e da mulher como pessoa em todas as dimensões do
seu ser. Surpreendeu-nos o acréscimo da expressão sem ônus para os cofres públicos
no artigo que estabelece o Ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas”.
Se o Ensino Religioso è disciplina dos horários
normais das escolas públicas, alguém deverá ministrá-lo e o Estado não pode eximir-se da responsabilidade do ônus, o que tornaria
esta disciplina elemento estranho ao currículo escolar. “O Ensino Religioso è disciplina garantida pela Lei Maior. Por isso, não pode ser tratado como adendo nem como favor
prestado da determinada denominação religiosa. Ele è parte integrante de um processo de educação global inserido nos horários
normais das escolas públicas e compete ao Estado arcar com o devido ônus” – concluíram os bispos.
3.4. O ENSINO RELIGIOSO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
O Estado de Rio de Janeiro deu viabilidade prática
ao ensino religioso regulamentando-o em
14 de setembro de 2000 pelo governador do Estado do Rio de Janeiro, Antony Garotinho, ao sancionar a lei 3459 que determina
que o ensino religioso faça parte do currículo das escolas públicas, ocasionou uma retomada dos debates sobre os limites entre
ciência e religião. A lei do ex-governador foi colocada em prática pela atual governadora, Rosinha Matheus, e trouxe mal estar
não apenas para setores “fundamentalistas” do mundo religioso e científico, mas também, para setores “moderados”,
pertencentes ou não a essas duas instituições.
Os 1,7 milhão de alunos dos 92 municípios foram
divididos por credo durante a disciplina religiosa, a ser abordada, separadamente, por doutrinas como a católica, a evangélica,
a espírita, a umbandista, a messiânica e outras que se manifestarem dentro da comunidade.
“A visão clássica era de que a ciência explicaria
o mundo e com isso não haveria mais necessidade de se recorrer aos aspectos mágicos e religiosos, mas não foi bem isso que
aconteceu”, analisa Silas Guerriero, sociólogo e professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Para ele, “apesar do mundo estar cada vez mais ´cientifizado´, as pessoas ainda
fazem uso de explicações religiosas, porque a dimensão religiosa faz parte do ser humano”.
Para pensadores moderados brasileiros, o principal
problema não é levar a religião para dentro da escola, mas a forma como ela será abordada dentro das instituições de ensino.
Nesse ponto, uma das principais preocupações é o caráter confessional do ensino religioso que implica na religião ser ensinada
de maneira dogmática, separada de acordo com os credos. Esse tipo de ensino religioso dentro da escola pública envolve questões
que ultrapassam a questão do "status" do conhecimento. Esbarra em questões como respeito ao sincretismo ou pluralismo religioso
(uma das principais características da sociedade brasileira), separação entre instituições como Estado e Igreja (apontada
como um dos marcos da civilização moderna) e no processo chamado de secularização da sociedade.
“Com o processo de secularização, a religião
deixa de ser o processo fundador da visão de mundo e passa a ser uma das esferas sociais, Ou seja, ela não some, apenas se
iguala a outras esferas como moral, família, estado, educação etc. As pessoas hoje lançam mão da religião quando precisam
e da forma que precisam”, esclarece sociólogo.
A ameaça ao Estado laico, não partidário de nenhum
credo específico, é outro ponto de preocupação dos críticos à prática do ensino religioso confessional no estado do Rio de
Janeiro. A polêmica é alimentada pela aberta manifestação da governadora do estado quanto sua postura religiosa evangélica.
Para Carlos Minc, deputado do PT que escreveu o projeto de lei que propõe a alteração do ensino confessional para um ensino de caráter socio-antropológico,
a implementação do ensino religioso nos moldes da realizada no Rio fere claramente a lei federal e o princípio do Estado laico.
“Estado tem que zelar pela legislação, defendendo
o princípio da liberdade religiosa (...). É claro que o oportunismo político ultrapassa fronteiras éticas e morais e pode
se utilizar do atraso para conquistar apoio político de lideranças religiosas”, critica o deputado. Sobre este aspecto, Lourenço Stelio Rega, professor da Faculdade Batista de Teologia de São Paulo, faz
considerações mais contundentes. Segundo ele a noção de Estado laico não condiz com a realidade brasileira.
“Vamos ser claros, o Estado brasileiro não
é laico. Sofre influências principalmente da Igreja Católica. Talvez neste atual governo menos, por ser de natureza mais sincrética”, enfatiza. Já para o ex-deputado Carlos Dias, do PP, que propôs a instituição do ensino religioso confessional nas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, a lei
não ameaça o Estado laico. Para ele, o Estado é pluralista e por isso precisa trabalhar com todas as correntes de pensamento,
inclusive a religiosa e isso também no campo educacional, dando a liberdade de expressão para todas as religiões.
3.5. ENSINO RELIGIOSO
E SINCRETISMO
No edital de abertura do concurso para professores
de ensino religioso das escolas públicas do Estado do Rio, as 500 vagas oferecidas foram separadas da seguinte forma: 342
para o credo católico, 132 para o credo evangélico e 26 vagas para professores dos demais credos. Esse edital deixa clara
a característica confessional da educação religiosa. Porém, se essa é a idéia, o ensino religioso deveria atender a todos
os credos, o que dificilmente acontecerá se essa divisão de professores for mantida. Mesmo que outra divisão fosse feita,
também seria difícil atender as diversas possibilidades de demanda religiosa, se for levado em conta o sincretismo religioso
brasileiro e autonomia religiosa característica da secularização da sociedade.
O Estado não tem meios de oferecer um ensino religioso
que atenda todos os tipos de crença. Por outro lado, se isso acontecesse, não haveria sentido porque isso seria papel da Igreja
e não da escola. Para Rega a educação religiosa na escola deve lidar com o fenômeno religioso presente na vida humana, o relacionamento
com o “sagrado” e os temas pertinentes a essa questão. “Deve ensinar aos alunos a reconhecer os elementos
que compõe a vida religiosa, tais como as definições de religião, os ingredientes ou componentes da experiência e prática
religiosa, os ritos e os símbolos”, argumenta o professor. O ensino religioso nas escolas deveria ser fenomenológico,
ou seja, com uma abordagem antropológica, sociológica e cultural. “Poderia e deveria acontecer dentro das escolas públicas
apenas se pudesse seguir os moldes de uma ciência da religião, caminhando no sentido de mostrar os vários mitos da criação,
promovendo o respeito às diferenças”, conclui Guerriero.
4. CONCLUSÃO
O Ensino Religioso, compreendido como prática educativa que abre a pessoa
à dimensão do transcendente, è mediação que ajuda a encontrar respostas às questões existenciais e a definir as exigências
éticas inerentes ao exercício da cidadania. Nesta perspectiva, contribui para diminuir a violência, a corrupção e as desigualdades
sociais. Já existem no Brasil significativas experiências de Ensino Religioso Escolar, expressão de trabalho articulado entre
diferentes confissões religiosas e Secretarias de Estado da Educação. São experiências que, superando o proselitismo, assumem
a educação da e na religiosidade, tão necessária ao desenvolvimento integral da pessoa. Seria lamentável comprometê-las e anular o expressivo trabalho vivenciado no Ensino Religioso, hoje organizado em todos
os Estados do Brasil, com exceção de um. Ao processo constituinte, a segunda maior emenda popular apresentada foi a favor
do Ensino Religioso, e contou com apoio de diferentes denominações religiosas
e entidades, o que expressa o desejo e a aspiração da sociedade brasileira.
Além de inconstitucional, a expressão sem ônus para os cofres públicos è
um desrespeito para com a pessoa humana em processo de formação, para com o profissional da educação – professor, e
para com a sociedade brasileira que entendeu a importância dessa disciplina no processo de educação integral e formação de
pessoas-sujeito, comprometidas com a vida, com a história e com a construção de uma nova sociedade humana mais justa e solidária.
ANEX
GABINETE DO DEPUTADO CARLOS DIAS
LEI 3459 DE 14 DE SETEMBRO DE 2000
AUTOR: DEPUTADO CARLOS DIAS
DISPÕE SOBRE ENSINO RELIGIOSO CONFESSIONAL
NAS ESCOLAS DA
REDE PÚBLICA DE ENSINO
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
O Governador
do Estado do Rio de Janeiro,
Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte
Lei:
Art. 1º -
O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina obrigatória
dos horários normais das escolas públicas, na Educação Básica, sendo disponível na forma confessional de acordo com as preferências
manifestadas pelos responsáveis ou pelos próprios alunos a partir de 16 anos, inclusive, assegurado o respeito à diversidade
cultural e religiosa do Rio de Janeiro, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
Parágrafo único
– No ato da matrícula, os pais, ou responsáveis pelos alunos deverão expressar, se desejarem, que seus filhos ou tutelados
freqüentem as aulas de Ensino Religioso.
Art. 2º - Só poderão
ministrar aulas de Ensino Religioso nas escolas oficiais, professores que atendam às seguintes condições:
I – Que tenham
registro no MEC, e de preferência que pertençam aos quadros do Magistério Público Estadual;
II – tenham sido credenciados
pela autoridade religiosa competente, que deverá exigir do professor, formação religiosa obtida em Instituição por ela mantida
ou reconhecida.
Art. 3º - Fica estabelecido
que o conteúdo do ensino religioso é atribuição específica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever
de apoiá-lo integralmente.
Art. 4º - A carga
horária mínima da disciplina de Ensino Religioso será estabelecida pelo Conselho Estadual de Educação, dentro das 800 (oitocentas)
horas-aulas anuais.
Art. 5º - Fica autorizado
o Poder Executivo a abrir concurso público específico para a disciplina de Ensino Religioso para suprir a carência de professores
de Ensino Religioso para a regência de turmas na educação básica, especial, profissional e na reeducação, nas unidades escolares
da Secretaria de Estado de Educação, de Ciência e Tecnologia e de Justiça, e demais órgãos a critério do Poder Executivo Estadual.
Parágrafo Único
– A remuneração dos professores concursados obedecerá aos mesmos padrões remuneratórios de pessoal do quadro permanente
do Magistério Público Estadual.
Art. 6º - Esta Lei
entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2000.
§ 1: «Catholica Ecclesia et Apostolica Sedes, moralis personae rationem habent ex ipsa ordinatione divina» (Cânon 113
do CIC de 1983).
Cf. Estudos da CNBB, n° 49 e 41-44: O Ensino Religioso nas Constituições do Brasil,
nas Legislações do Ensino, nas Orientações da Igreja, 1987. «O ensino religioso escolar tem sido objeto da solicitude pastoral dos Bispos e do Grupo de Reflexão do Ensino Religioso
(GRERE) através de orientações, encontros e subsídios.
Há grande preocupação
em estabelecer a identidade do ensino religioso escolar, distinto da catequese, principalmente nas escolas da rede oficial,
frente ao pluralismo de crenças dos alunos, das famílias e dos professores. Nota-se também uma busca de precisão nos seus
objetivos, métodos, conteúdos e linguagem que permitam um referencial básico a fim de que os temas não sejam apresentados
de forma vaga, neutra, imprecisa ou confusa, sob pretexto de atender à pluralidade de religiões dos educandos.
Evidencia-se a necessidade de um
persistente trabalho para solucionar os problemas relativos ao professor do ensino religioso escolar: cursos de formação válidos
para a carreira do magistério, estabilidade profissional, igualdade de tratamento aos outros professores e acompanhamento
adequado da Igreja.
Filho de família judia, o deputado Carlos Minc (PT-RJ) considera
que o ensino do criacionismo nas escolas públicas do Rio de Janeiro é uma volta à Idade Média. Minc é contra o ensino religioso
confessional e acredita que as aulas de religião, de modo geral, não são necessárias. Ele também é responsável pelo projeto
que alterava a lei de autoria do ex-deputado Carlos Dias (PP-RJ). O projeto de lei previa que as aulas de religião, de caráter
facultativo, fossem ministradas do ponto de vista histórico-antropológico. O plenário da Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro (Alerj) chegou a aprovar o projeto de lei, em 16 de outubro de 2003, que foi, no entanto, vetado pela governadora
Rosinha Garotinho.
O ex-deputado Carlos Dias (PP-RJ) é autor da lei 3459 que instituiu
o ensino religioso confessional nas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro. Pela lei, sancionada em 14 de setembro de
2000 pelo então governador Anthony Garotinho, as aulas de religião ficam divididas por credo, são facultativas e integram
o calendário normal das escolas públicas, desde a educação infantil até o ensino médio. Em janeiro de 2004, foi realizado
o concurso público para contratação de 500 professores de religião confessional. Católico, o ex-deputado não vê problemas
no ensino do criacionismo nas escolas, "porque ninguém hoje acredita que o homem evoluiu do macaco. Somos seres irrepetíveis,
não temos a capacidade de nos recriar, independentemente de todos os delírios científicos".